Capítulo 02

ORE COMO UM GOURMET – David Brazzeal

Capítulo 3

DESENVOLVENDO O PALADAR

“Eu Te provei, Te saboreei e, agora tenho fome e sede de Ti.” – St. Agostinho de Hipona, Confissões

“Vá para onde suas melhores orações te levarem.” – Frederick Buechner, Contando Segredos

Volte no tempo comigo… de volta pro final dos anos 80. As ombreiras eram grandes. A música era brega. Sintetizadores tinham aquele som característico. Os óculos eram grandes e o cabelo, maior ainda. As mangas dos casacos dobradas. Pulseiras que se dobravam nos braços. “Internet? O que é isso?”

Eu estava no Brasil, na cidade maravilhosa e exótica do Rio de Janeiro. Morava numa casa branca de dois andares numa rua calma que era caminho para a subida da famosa montanha onde fica a estátua de braços abertos do Cristo Redentor. Uma floresta tropical envelopava o final de nossa rua. Ocasionalmente um mico aparecia nas árvores. O som de um riacho atrás de nossa casa era nossa contínua trilha sonora da vida.

Morando nesta casa comigo estavam minha fantástica, sempre apoiadora esposa, Sanan, e nossas quatro filhas divertidas e fabulosas. Uma empregada passava nossas roupas e fazia nossos almoços, que sempre tinham feijão preto e arroz. A vida era boa.

Eu estava no Brasil ensinando jovens compositores talentosos a colocar suas ideias no papel, nas pautas musicais. Eu editava música para uma editora cristã e era líder de louvor numa nova igreja brasileira perto da praia da Barra da Tijuca. Estudava a linda língua portuguesa.

No entanto, algo estava fundamentalmente errado. Minha vida parecia aquele momento de filme em que a família inteira se reúne dos lugares mais distantes para saborear aquela maravilhosa refeição do Dia de Ação de Graças. A mesa está lindamente decorada, vovô e vovó estão lá, os netos estão impecavelmente bem vestidos e comportados, e um enorme peru é recebido à mesa com festa e aplausos. Todos se sentam e vovô faz as cerimônias da casa cortando o peru, colocando uma boa fatia de peito em cada prato, já cheios de outras delícias. Então a família cai na festa… mas um a um eles caladamente descobrem que o lindo peru está… bem… incrivelmente seco… e… (tosse discreto) sem gosto.

Essa era minha vida naquele tempo. Na superfície, tudo estava bem… tudo estava no caminho certo, mas por dentro eu me sentia como aquele peru, incrivelmente seco… seco demais, como aprendi a dizer em português.

GREVE DE FOME

Por que me sentia tão vazio por dentro? Afinal, eu participava ativamente de uma boa igreja. Vivia orando, lendo a Bíblia, ajudando pessoas, liderando pessoas no louvor e expandindo o reino de Deus.

A resposta para minha frustração não veio rápido. Eu pensava sobre esse problema com cada vez mais frequência. Dobrei meus esforços em tudo de bom que mencionei acima. Não ajudou. Eu só ia ficando mais frustrado. Fiquei zangado com Deus. Por que Ele estava fazendo isso comigo? Mesmo com o suporte de colegas e minha esposa amável, eu sentia que não tinha ninguém com quem conversar; com que colega missionário eu poderia me abrir e revelar tal estagnação interior? Comecei a ficar desesperado. Decidi parar de comer. (Digo que decidi parar de comer, porque não me sentia espiritual o suficiente para chamar aquela experiência de jejum. Era mais uma greve de fome ou até mesmo uma birra contra Deus.)

Isso mesmo, eu queria pegar minha vida, fazer como se fosse uma grande bola e jogar na cara de Deus pra ver o que Ele faria com isso. Nos dias seguintes, minha crescente frustração, combinada à minha falta de alimentação física, deu forças às expressões cruas de minhas “queixas” ao Todo-Poderoso. Eis uma amostra do que falou a voz de minha alma:

OK, olha aqui, Deus. Tô muito frustrado. Eis o que vai acontecer: vou ficar sem comer até Você, de alguma forma, sair da Sua toca e me dizer o que fazer… Você tem que se comunicar comigo de alguma forma.

Foi Você que me trouxe pra este lugar, mas ao fazer isso você tirou de mim todas as minhas fontes de inspiração. Não consigo mais comprar um CD de música que toca minha alma. Não ouço mais Chuck Swindoll no rádio. Vince, meu melhor amigo que sempre conversava comigo nas horas difíceis, não está mais aqui. Nenhum livro novo pra ler. Claro, vou à igreja; mas pra ser honesto, simplesmente não estou Te ouvindo nessa nova língua.

Pra minha surpresa, algo começou a se infiltrar pelas brechas de minhas reclamações. Nas pausas, quando eu me dava tempo para ouvir, outros tipos de pensamentos começaram a ecoar… pensamentos de outro lugar… como se alguém, intencionalmente, estivesse derramando-os em minha alma, em forma de respostas suaves e gentis à minha raiva furiosa. Então uma delas se tornou claríssima:

Então… parece que agora somos só você e eu.

Como assim?

Parece que somos só VOCÊ e EU agora… Na verdade, tenho esperado por esse momento há algum tempo.

É mesmo? Não tô entendendo.

Não era pra ser um relacionamento? Só você e eu… e não um projeto em grupo.

Este pequeno diálogo me levou a fazer uma autorreflexão séria. Comecei a entender que estava sobrevivendo espiritualmente através de “acessos intravenosos”—me conectava em qualquer canto quando eu sentia que precisava de “alimento espiritual”. Mas quando me mudei para outro país, todos aqueles acessos convenientes foram arrancados de uma vez e ficaram lá pendurados no ar. Ao mesmo tempo, minha enorme necessidade de verdadeiro alimento espiritual crescia exponencialmente. Eu não tinha apenas novas responsabilidades de liderança, como também tinha que fazer tudo numa outra língua e contexto cultural. Adicione uma família crescente, com seus próprios problemas e necessidades. Então, não era pra menos eu me sentir vazio por dentro!

Neste momento, minha greve de fome virou jejum. A situação mudou. Minha alma, de frustrada, ficou faminta. Estava chegando em algum lugar, mas eu ainda não estava lá. O diálogo com Deus havia sido restabelecido e ainda que não tivesse todas as respostas, estava faminto por elas.

Escuta, Deus, eu realmente quero entender isso! Na verdade, isso tá tomando uma importância maior que todas as outras coisas. Tô ficando faminto!

Mas se no final disso tudo eu descobrir que esse relacionamento NÃO é uma possibilidade real… que realmente não vai acontecer… então vou jogar tudo pro alto.

Então, como funciona tudo isso NA REAL? A realidade nua e crua é que VOCÊ é invisível e VOCÊ é silencioso. Eu tô aqui e posso conversar. Como isso pode ser um relacionamento? Poderia, POR FAVOR, me ensinar como fazer? Não vou comer até Você quebrar o silêncio comigo e me dizer como isto funciona.

UMA RECEITA ANTIGA

Após vários dias do meu jejum, tive uma experiência incomum. Um pequeno livro azulado de minha estante parecia chamar minha atenção. Peguei ele e li o título: Experimentando as Profundezas de Jesus Cristo. Pensei comigo mesmo: design feio, capa monocromática, título pretensioso. Não pode ser bom. Coloquei de volta na estante. Mas então aquele livro parecia me desafiar daquela estante… Te DESAFIO a me ler!

Peguei-o de volta e passava as páginas iniciais procurando por mais desculpas pra detoná-lo. Olha… primeira publicação em 1685? Esquece, não vou ler algo tão arcaico. Escrito por Madame Guyon… quem diabos é ela?

Meu título não é o que você está procurando… Profundeza? Jesus Cristo? Experiências?

Desisti e comecei a ler.

Levou um tempo pra me ajustar à linguagem antiquada, mas no segundo capítulo, me dei conta de que aquele livro estava me falando exatamente o que eu estava faminto pra saber—o que fazer quando estivesse sozinho com Deus.

“Abra a Escritura; escolha alguma passagem que seja simples e suficientemente prática. Em seguida, vá ao Senhor, quieto e com humildade. Aí, diante d’Ele, leia uma pequena parte da passagem que você escolheu. Seja cuidadoso enquanto lê. Tome o que está lendo de modo completo e gentil. Prove-o e digira-o à medida que lê.”

“Prove”… “Digira”? Rapaz, esse negócio é bom.

“Ao ler, faça pausas. Elas devem ser bem gentis. Você deve dar uma pausa para que você possa ligar sua mente ao Espírito. Internamente, você direcionou sua mente a Cristo… O Senhor é encontrado apenas no seu espírito, no âmago do seu ser, no Santo dos Santos; é ali que Ele habita. O Senhor virá ao seu encontro no seu espírito. Foi Santo Agostinho que, certa vez, disse que havia perdido muito tempo, no começo de sua experiência Cristã, tentando encontrar o Senhor externamente ao invés de voltar- se para o interior.” 1

Nunca ouvi isso antes! Por que ninguém jamais me explicou isso?

Devorei os primeiros capítulos do livro de Madame Guyon e, ao mesmo tempo, voltei a comer. Deus derrubou minhas barreiras e me deu mais do que um osso pra roer… recebi carne de primeira. Não era um livro que eu poderia folhear e colocar de lado; aquele livro estava me dando algo em que eu deveria trabalhar diligentemente, uma habilidade espiritual na qual eu deveria me aperfeiçoar.

Olhando pra trás, essa foi a minha primeira “aula de culinária”. E realmente gostei do sabor da entrada. Na verdade, gostei tanto que decidi guardá-la pra mim… fazer dela minha receita secreta pessoal e não contá-la para ninguém. Bem, eu contei pra minha esposa… mas pra mais ninguém! Entenda, já que eu nunca havia ouvido falar dessa mulher católica francesa e seu lugar na história da igreja, e nenhum pastor jamais me ensinou a orar assim, a última coisa que queria era que um colega bem- intencionado jogasse um balde de água fria na minha fogueira, dizendo algo do tipo: —Não me diga que você caiu nessa heresia!— Foi apenas depois de algum tempo que eu recebi surpreendentemente clara confirmação de que eu estava, sim, indo na direção certa… mas essa é uma outra história.

1 Jeanne Guyon, Experimentando as Profundezas de Jesus Cristo (Editora Vida, 2011)